A mulher da casa

Maria Luiza
6 min readAug 4, 2024

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eu, com 5 anos. essa é quem vc ta pedindo pra ser a mulher da casa, btw.

Quando nasci primogênita e mulher, os títulos de filha, princesa e preciosa da família foram os primeiros que conheci. Ser a joia de todos, a protegida do pai — por quem ele dizia que mataria e morreria — era uma sensação confortável, como estar envolta por uma bolha onde eu sentia que podia fazer qualquer coisa, sem medo.

Ser criança e depois mulher é assustador e solitário. Quando se nasce menina, mesmo antes do nascimento, tudo é decidido por você. Sua cor preferida, seu nome, suas qualidades. Cada menina que conheci enquanto crescia tinha suas próprias batalhas acontecendo a todo momento. O que muitas vezes nos unia era a consciência mútua de uma mudança oblíqua ao nosso redor, sem motivo aparente. Todas conheciam a sensação de que, um dia, os homens da sua família pulariam na frente de uma bala por você e, de repente, no outro, eram eles quem estavam apontando a arma. Bem na sua cara.

Um dia você é linda e graciosa, delicada, cuidada como um tesouro. No outro, está fervendo de hormônios, acumulando as tarefas domésticas da sua mãe e todas as relações com todos os homens da sua vida — amigos, paqueras, estranhos, irmãos, primos e tios — todas parecem ameaçadoras, potencialmente violentas de diversas formas.

Agora, ao repensar minha experiência como filha mais velha, acho que o buraco é mais embaixo. Muitas filhas mais velhas que conheci foram confrontadas muito cedo com a expectativa de abrir mão do seu bem-estar e dos seus desejos pelos outros. Generosidade é nosso primeiro traço de personalidade. Os títulos se perdem; não somos mais as joias, os tesouros a serem protegidos ou graciosas. Todos os privilégios de ser filha e irmã vão sendo cortados gradativamente.

Lembro da primeira vez que percebi que os títulos de filha e irmã já não vinham mais primeiro dentro da minha casa. Quando eu tinha 13 anos, minha mãe, que já tinha um casal de filhos — eu e meu irmão do meio — teve uma gravidez surpresa. No auge dos seus 43 anos, com uma gestação de risco por ser mais velha e fumante a vida toda, ela deu à luz ao meu irmão mais novo, por parto natural. E assim que a licença maternidade acabou, com um bebê de 6 meses em casa, ela voltou a trabalhar.

E o meu pai? Bom, meu pai trabalhou durante todo o período da gestação e não tirou licença paternidade. Eu não me lembro muito bem por quê. Mas acho que foi porque ele não quis mesmo… Ele tinha o poder de querer. E apesar de minha mãe trabalhar fora como ele e dobrado, com as tarefas domésticas, ele era o homem da casa, no final das contas.

Em um domingo, um dia antes de voltar ao trabalho, minha mãe fez uma grande faxina na casa e, como de costume, eu ajudei na limpeza. Costume, porque até então, eu não via como uma norma. No final do dia, enquanto assistíamos ao Fantástico na sala, minha mãe anunciou na frente dos meus irmãos e do meu pai: “Você é a mulher da casa depois de mim.”

“Você é a mulher da casa quando eu não estou.”

Eu sabia muito bem o que era ser o homem da casa. Meu pai, em seus momentos de raiva, fazia questão de nos lembrar quem era o homem da casa. Mas o que significava ser a mulher da casa?

Lembro de contar para uma professora sobre o nascimento do meu irmãozinho… Eu me sentia orgulhosa por ter sido confiada com tamanha tarefa. Tarefa de adulto, cuidar de um bebê! Ela me parabenizou e fez um aviso: agora, eu “estaria pronta para virar mulher, aprenderia a trocar fraldas e fazer mamadeiras”. Senti um desconforto; eu achava que já era mulher? Claro, ainda não havia menstruado, não tinha seios fartos ou um namorado, mas aprendi na aula de ciências que se olhasse entre as minhas pernas e visse uma vulva, isso queria dizer que eu era sim mulher. Ou não? Quando meninas se transformam em mulheres?

Na manhã seguinte, tínhamos todo um plano para que o bebê entrasse na creche na hora certa, eu e meu irmão estivéssemos na escola antes do sinal e meus pais conseguissem trabalhar com menos preocupações. Com o celular carregado e atenta a qualquer ligação dos meus pais, consegui concluir todos os planos da manhã com maestria: mamadeira na temperatura certa, roupas da escola separadas, mochilas prontas e café da manhã tomado. Deixei meu irmãozinho na creche a caminho da escola, levando minha mochila e a dele nos ombros e dando a mão para o meu irmão do meio sempre que atravessávamos a rua, do jeitinho que me foi instruído.

Após voltar da escola e esquentar a comida para almoçarmos, meu pai, que veio almoçar em casa, meu irmão e eu sentamos à mesa. Meu pai elogiou a maneira responsável com a qual deixei meu irmão mais novo na creche e cheguei à escola sem me atrasar. Ali, comecei a entender o quanto eu gostava de ser elogiada por fazer as coisas direito. Ao final, ele se levantou da mesa e voltou ao trabalho. Levei os pratos para a cozinha e tinha todo um plano: com a ajuda do meu irmão do meio, limparíamos a casa até que ela ficasse como minha mãe a deixou, terminaríamos antes da sessão da tarde e eu faria pipoca para assistirmos juntos.

Fui frustrada assim que pisei na cozinha. Eu não imaginava o trabalho que dava manter tudo limpo e arrumado. Como minha mãe conseguia? Assim que tirei o prato de meu pai da mesa, meu irmão levantou e foi até o quarto pegar suas pipas. Quando ele cruzou meu caminho, chamei sua atenção:

“Preciso da sua ajuda para deixarmos a casa arrumadinha para quando a mãe chegar. Me ajuda com a louça? Eu começo pelos quartos e…”

Nem terminei a frase e meu irmão já não estava mais na cozinha. Corri até o quintal para alcançá-lo e pedir ajuda novamente, já irritada. Da escada, perto do portão a caminho da rua, ele gritou:

“LIMPA VOCÊ! VOCÊ É A MULHER DA CASA, SE VIRA.”

Fiquei constrangida ao ver que alguns vizinhos presenciaram a cena e voltei de cabeça baixa e pano de prato no ombro para dentro de casa. Meu pai e meu irmão derrubaram comida no fogão, largaram restos no prato e na mesa, além de terem usado o banheiro e respingado xixi em toda a tampa.

De repente, me vi consumida por um sentimento que poderia me matar engasgada. Raiva, vontade de quebrar todos os pratos no chão. Frustração, vontade de deitar sob os cacos e chorar em posição fetal. Solidão, vontade de cortar os pulsos. Era assim que minha mãe se sentia?

Depois de imaginar essa cena por completo, imóvel e em pé, olhando para a bagunça da cozinha, uma lágrima quente rolou pela minha bochecha. Eu queria gritar, mas me senti perdida, não achava minha voz. Ela poderia muito bem ter sido levada para a rua como as pipas na mão do meu irmão. Estava completamente sozinha e apática. Limpei o rosto com uma das mãos, bufei e arregacei as mangas da blusa para começar a limpar. Quem mais o faria? Imaginar minha mãe chegando em casa e vendo a sujeira e bagunça do dia me partia o coração, principalmente, após experienciar o que eu não consigo definir de outra forma a não ser: a vontade viceral de dizimar os homens da face da terra. Não queria que nenhuma outra mulher sentisse isso, nunca. Muito menos a minha mãe. Por reflexo da minha generosidade imposta, compreendi que se alguém tivesse que passar por isso, tinha que ser eu. (?)

Por um lado, me senti humilhada. Eu já sabia o suficiente sobre feminismo com 13 anos para entender que aquilo era um problema de gênero, injusto e violento. Talvez não com tanta clareza, mas com certeza sabia. Por outro lado, limpar me esvaziou, diminuiu a queimação que eu tinha no peito. Essa sensação infelizmente se repetiria e se repete até hoje. O que me sobrou foi um pouco de energia para colocar um alarme para 4 da tarde, horário em que meu irmãozinho saía da escola, deixar a mamadeira pré-pronta e capotar no sofá da sala de cansaço e tristeza.

Ao pegar no sono, lembro vagamente de pensar que queria estar jogando futebol na rua e que ainda tinha lição de casa para fazer. Senti a raiva se dissipando enquanto eu entrava em um sono cada vez mais profundo e sonhei que era um menino correndo no sol, em um campo aberto cheio de grama.

Acordei com o despertador no ouvido e um pouco desapontada. Acordei menina. Ou mulher. Não sei.

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