câncer 101

Maria Luiza
3 min readAug 4, 2024

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*txt de quando eu não conseguia dormir e nem gostava de acordar porque sentia muita dor.

Acordar é a minha primeira batalha do dia. É a mais difícil também. Pra ficar mais fácil de entender: sou eu contra a possiblidade de enlouquecer a qualquer momento. E eu estou em desvantagem. Sempre.

Meu quarto não tem cortina, desvantagem número um. A luz entra sem pedir licença e me irrita. As paredes são finas, desvantagem número dois. Consigo ouvir todos acordando primeiro que eu. Sempre me sinto deixada pra trás por não conseguir me juntar a eles.

Começa assim: abro os olhos, vejo luz, minha família já discute alto pela manhã. Ambiente propício. Sinto dor. Sinto meu peito doer no ritmo das batidas do meu coração. Tento não pensar na dor. Sinto meu corpo esquentar de raiva. Respiro uma, duas, três vezes. Bem fundo.

Viro pro canto, abraço um travesseiro e me imagino gritando bem alto. Sinto vontade de me rasgar inteira e me despedaçar e acabar com qualquer resquício dessa existência do meu câncer. Meus olhos enchem de água. Que tonta. Tentar segurar o choro quando ninguém está olhando? Por quê? Sou só eu aqui.

“Maria? Já vai levantar?” Minha mãe bate na porta e eu me assusto. É estranha a sensação de culpa por me sentir sozinha quando minha mãe está ali, do outro lado da porta. Ela não me deixaria sozinha se soubesse. Não posso responder. Ela desiste.

Deixo correr tudo de novo. A raiva, a angústia, o medo e o choro. Por uns dez minutos… ou uma hora, não sei. Tateio a mesa do lado da minha cama procurando meus remédios e minha garrafa de água. Esbarro na minha espada de Ogum, esbarro no meu crucifixo, esbarro nos cristais dentro do potinho de vidro, antes de alcançar a única coisa que vai me ajudar de verdade.

O primeiro comprimido é grande e entala na minha garganta. Por que eu tô acordada? Engasgo e meus olhos enchem de água de novo. Isso tudo é muito pra mim, preciso voltar pro escuro, preciso voltar a dormir. Me forço a engolir. Eu não aguento mais.

Gasto alguns segundos encarando a única parede sem desenho no meu quarto. Não existe um pensamento sequer na minha cabeça agora. Essa é a melhor parte de acordar.

Tomo o segundo remédio no piloto automático. Mal sinto o plástico da garrafa na minha mão ou a mudança de temperatura na minha língua. O segundo comprimido é muito menor que o primeiro mas muito mais forte. Minha pressão baixa. É como se eu tivesse levado uma paulada na cabeça. Fecho os olhos. Me imagino caindo do céu, passando entre várias nuvens e caindo.

Luiz Fernando, meu irmão caçula, interrompe minha queda abrindo a porta do meu quarto. Ele nunca pede licença ou bate na porta. Não abro os olhos. Não olho pra ele. Eu quero continuar caindo. Ele me dá a mão e diz “você sabia que se a areia estiver quente a tartaruga nasce menina?”. Eu não sabia, Luiz.

Levanto e consigo ouvir alguns aplausos na minha cabeça seguidos de um silêncio. Minha hora de entrar em cena. Tomar café, dizer bom dia, entrar na dinâmica da vida deles de novo. A primeira batalha acabou. Preciso de água, música e sol.

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