Coisas que acontecem em casa, pt.1

Maria Luiza
4 min readAug 4, 2024

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O conceito de vício sempre me causou reações instantâneas nos cinco sentidos.

Tem cheiro de álcool e suor frenético.

Tem gosto de amargo e metálico, de sangue e suco gástrico.

A cor é avermelhada e os visuais são compostos por cenas desfocadas.

O vício soa como uma voz intensa, que fica mais alta a cada segundo, suja e cheia de palavrões e vulgaridades.

E ele me toca como quem me agarra pelo cabelo, aperta meu crânio com duas mãos fortes, uma de cada lado, e me segura pelo braço sem preocupação em medir a força.

Enquanto encaro a geladeira de cervejas e bebidas alcóolicas do mercado, sinto um arrepio correr dos meus ombros até as pontas dos meus dedos da mão. Qual dessas bebidas tem o maior volume alcoólico? Quantas preciso beber para não gritar bem alto, na frente de todos aqui, agora? Pego uma garrafinha caçula de Sprite. Dos vícios, o menos pior.

Olho para a lista de coisas que minha mãe precisa para hoje. 1) pão para cachorro-quente; 2) copos descartáveis; 3) dois maços de cigarro — Rothmann’s azul, não prata; 4) guardanapos. É o aniversário de 11 anos do meu irmão mais novo. Eu gosto de pensar que ele é especial.

Filho não planejado de pais mais velhos. Gravidez de risco para a minha mãe, que queria abortar o feto por medo de morrer durante o parto mas foi convencida pelo meu pai de que o aborto seria mais perigoso do que a gestação. Ele nasceu saudável, de parto natural e desde a viagem do hospital para casa eu sabia. Eu seria como sua mãe. Inconscientemente ou não, criei a criança mais amorosa, autoconfiante e forte que eu pude, com tudo que aprendi só depois que eu cresci, tudo que que precisava ser desde que eu era pequena.

A casa está cheia de crianças e quando chego, todas olham para mim. Às vezes, me pergunto como minhas avós lidavam com tantas mini-pessoas, cada uma com suas necessidades e peculiaridades, ao mesmo tempo. Elas se esqueciam de alguém? Elas tinham medo da gravidez?

Enquanto corto os pães ao meio, minha tia recheia um por um com salsicha e molho. Minha mãe ainda tenta organizar a disposição dos doces e bolos na mesa, nunca satisfeita.

“Que pães feios são esses?”, ela vira o corpo para o balcão aonde sigo cortando e acomodando cada um deles em uma forma.

“Não são feios, mãe. Eu trouxe pães de cachorro-quente porque nenhum mercado tem 30 pães franceses sobrando num sábado à noite, ué”. Eu respondo, tentando modular o meu mal humor para não descontar nela a pressão que venho sentindo.

Consigo ouvir meu pai discutir com alguém no portão de casa. Só pela pronuncia das sílabas e velocidade de fala eu consigo deduzir quanto ele bebeu. O suficiente para falar por horas sobre como ele é o melhor pai, marido e homem, e como eu ou qualquer outra pessoa dessa casa não faz o mínimo. Minha raiva seria menor se ele estivesse falando a verdade.

Ele desce a escada, entra na cozinha como uma cobra sorrateira, deslizando com cuidado onde passa. Meu pai pergunta por quê minha mãe está olhando para ele daquela forma. Quê forma? Eu me pergunto. Já sentindo a adrenalina subir no corpo. Sua voz oscila entre grave e agudo como quem tenta escolher os efeitos da sua mensagem. Minha mãe, que não estava olhando para ele, tenta manter seu tom.

Ele se vira para mim. Seus olhos opacos olham na minha direção mas enxergam além de mim e, de repente, é como se ele pudesse abrir o chão do inferno sob a gente apenas com uma cara feia. Ele me mede e começa:

“Eu sei que a Maria trabalha de casa alguns dias, mas ela ainda sim pode arrumar um tempinho para lavar a louça”, ele aponta para mim, enquanto se escora na parede. E continua:

“Você se acha melhor que a gente porque tem diploma, mas adivinha? Você é minha filha e isso, nenhum Mackenzie vai mudar.” Eu engulo seco e tento não olhar em sua direção, todos os meus músculos pedem violência como válvula de escape para a tensão. Me imagino dando um soco em seu olho.

Minha tia interrompe o monólogo embriagado em uma tentativa de desviar o foco dele para a comida:

“Toma tio, come um cachorro-quente, eu fiz o molho que o senhor gosta”, ela sorri, tentando barganhar por sua simpatia.

As mulheres da minha família aprenderam desde cedo que confronto direto é desvantajoso. Ouvir as humilhações sem retrucar e lutar contra os próprios pensamentos e sentimentos é o único caminho para evitar o agravamento de situações como essa. Eu conheço esse movimento de redirecionamento da fúria do outro, da fúria do homem, mas, não fui feita para ele.

Algo dentro de mim queima toda vez que ouço uma voz masculina levantando. Algo dentro de mim sempre me convence de que eu posso derrubar um homem com a minha fúria e com a minha dor. E junto com a queima vem o coração acelerado e a raiva cega, a vontade de machucar de volta é mais forte do que eu. Raramente consigo manter o bico fechado.

A noite vai ser longa. Ninguém fala muito sobre a dicotomia de viver com duas versões de uma pessoa alcoólatra. Eu amo o meu pai, o cara sóbrio e amoroso que eu conheço. Entretanto, eu não devo nada àquele homem pequeno e perdido, cheirando a álcool, que tem síndrome de grandeza. E isso é justificativa o suficiente para acertá-lo com uma garrafada na cabeça, se necessário.

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